Está nas mãos da Justiça do
Rio de Janeiro a
disputa de dois casais pela adoção de uma criança de 1 ano e 2 meses. E o
Ministério Público suspeita que a argumentação de um deles se baseou num
documento fraudado. A reportagem é de Mohamed Saigg e Flávia Jannuzzi.
Foram mais de três anos na fila de espera pelo sonho de adotar uma
criança.
“Eu imaginei essa criança que ela viesse de qualquer jeito, que fosse uma
criança pretinha, branquinha, com problemas ou sem, com deficiência física ou
sem. Pra mim, ela é minha filha, de coração e de alma”, disse uma mulher.
A menina chegou a morar um mês na casa de uma
família de
Paraíba do Sul, a 120
km do Rio de Janeiro. Até que eles souberam que não estavam sozinhos na briga
pela guarda da criança. Um empresário do setor de táxi aéreo e uma médica, que
moram no Rio de Janeiro, também frequentavam o abrigo. Chegaram a levar a
criança para casa por duas vezes, com autorização judicial. Mas nunca fizeram
parte do Cadastro Nacional de Adoção.
“Esse casal não consta em nenhuma lista de adoção. em nenhuma lista de
habilitados”, afirmou o procurador de Justiça Marcos André Chut.
Na semana passada, a família que mora no Rio conseguiu uma liminar na Justiça
para que a criança fosse retirada da família de Paraíba do Sul. No pedido, eles
alegaram que a menina precisaria de cuidados especiais por ser portadora do
vírus HIV. Um laudo, com o resultado de "reativo", foi juntado ao
processo.
Na liminar favorável ao casal do Rio, a desembargadora Helena
Cândida Lisboa Gaede afirmou que um bebê soropositivo necessitaria de cuidados
especiais, o que a médica poderia dar. Já a candidata a mãe na lista oficial,
por ser leiga, estaria sempre dependendo de chamar um médico para
atendimento.
Mas a decisão pode ter sido baseada numa fraude. A Defensoria Pública foi ao
mesmo laboratório e pediu outro laudo referente à mesma amostra de sangue,
assinado pela mesma bioquímica. Desta vez, o resultado foi "não reativo".
Diagnósticos diferentes, mas com números iguais.
Uma médica, especialista em doenças infecciosas, explica que o resultado do
primeiro laudo também deveria ser negativo.
“De 0,90 para baixo, está negativo. Aqui está 0,15 e aqui está 0,15, está
tudo igual. A única diferença entre esses dois exames é a palavra ‘não’ antes de
‘reativo’. Esse índice que está marcado no exame condiz com o resultado
‘negativo’”, revelou a médica Tânia Vergara, membro da Sociedade Brasileira de
Infectologia.
“Nos entendemos que há indícios flagrantes de que o laudo foi adulterado”,
disse o procurador de Justiça Marcos André Chut.
“Ainda que o resultado fosse positivo, apenas como suposição, nós sabemos que
essa doença, no Brasil, hoje, é muito bem tratada. O Brasil tem prêmio de
reconhecimento pela excelência do serviço prestado aos portadores dessa doença e
gratuito”, ressaltou o defensor público Marcelo de Oliveira Coelho.
Outro problema: a contraprova do exame não foi apresentada.
“Quando o teste anti-HIV dá positivo, ou reativo, ele é chamado novamente ao
laboratório para colher uma nova amostra em dia diferente”, afirmou Tânia
Vergara.
A partir da suspeita de adulteração do resultado do exame, os promotores
decidiram instaurar um procedimento criminal para investigar se houve fraude ou
não. E a menina continua no meio de uma briga judicial. O Ministério Público
entrou com um mandado de segurança para que a criança volte a conviver com a
família de Paraíba do Sul, a primeira na fila de espera para adoção.
Diante dos indícios de fraude no laudo, a desembargadora determinou que, em
vez de ficar com a família do Rio, a criança voltasse para o abrigo.
Na quinta-feira o casal que está na lista oficial de adoção teve que devolver
a menina de 1 ano e 2 meses às freiras que cuidam da instituição. Enquanto a
disputa judicial continuar, o futuro da criança permanece incerto.
O casal que apresentou o laudo sob suspeita não quis gravar entrevista. A
advogada Silvana Moreira diz que os clientes dela decidiram não tratar do
assunto publicamente porque a criança merece ter a privacidade de sua história
de vida respeitada.
A desembargadora Helena Cândida Gaede reforçou que a decisão de manter a
criança no abrigo é para evitar a formação de vínculos afetivos com as duas
famílias até a apuração dos fatos.
O Jornal Nacional também procurou a bioquímica Nina Machado e Mello que
assinou os laudos, mas ela preferiu não gravar entrevista. Em nota, ela afirma
que já esclareceu todos os fatos à promotoria.